BPO - Batista Pereira & Oliveira - Advogados e Associados
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BPO - Batista Pereira & Oliveira
Os fins não justificam os meios: a inconstitucionalidade do protesto de certidão de divida ativa

Por Lummy Masaki¹ e Lucius Marcus Oliveira²

RESUMO

O objetivo do presente estudo é defender a ilegitimidade da utilização do Protesto de Certidão de Dívida Ativa – CDA. Para tanto, socorreu-se da jurisprudência, doutrina e legislações, a fim de tratar da inconstitucionalidade formal e material do disposto do parágrafo único, do artigo 1º da Lei 9.492/97 e das consequências e desafios decorrentes de sua legitimação. Ao final, concluiu-se que a validação do aludido dispositivo se concentra, exclusivamente, na finalidade efetivar a satisfação creditória da Fazenda Publica, mesmo que para isso seja necessário utilizar-se de meios ilegítimos. Isso porque, a aprovação da Medida Provisória foi um verdadeiro “jabuti legislativo”, medida essa antidemocrática, a qual não oportuniza o debate sobre o tema além de ferir o artigo 1º da Constituição Federal. Sem contar que, em relação ao seu conteúdo, há uma desconexão com o sistema como um todo, além da configuração de sanção política (coação ao pagamento), desvio de finalidade e inobservância do principio da legalidade e do devido processo legal.

PALAVRAS CHAVES: Protesto extrajudicial; Certidão de Dívida Ativa; cobrança protesto extrajudicial; impossibilidade.

INTRODUÇÃO

Por muitos anos a Execução Fiscal, cuja regulamentação encontra-se prevista na Lei nº 6.830/80³, representou forma única de cobrança judicial de crédito tributário.

Todavia, apesar desse conhecimento, vários Órgãos da Administração Pública começaram a apontar as certidões de divida ativa para protesto, inclusive aquelas motivadas em crédito tributário.

Desta feita, acirrou-se válida discussão entre os operadores do direito sobre a possibilidade ou não do uso do protesto da CDA pela Administração Pública, em decorrência deste instituto ser tipicamente de regime jurídico de Direito Privado e inexistir lei que autorize esta prática.

Como é sabido, a Lei n° 9.492 de 10 de setembro de 1997, que trata da regulamentação de protestos de títulos e outros documentos de dívidas, teve seu conteúdo modificado através do art. 25 da Medida Provisória nº 577/2012, posteriormente convertida na Lei n° 12.767  de 27 de dezembro de 2012, cujo artigo 1° assim determina:

“A  Lei n° 9.492, de 10 de setembro de 1997, passa a vigorar com as seguintes alterações:

Art. 1° […]

Parágrafo único: Inclui-se entre os títulos sujeitos a protesto as certidões de divida ativa da União, dos Estados, do Distrito Federal, dos Municípios e das respectivas autarquias e fundações públicas.”

Desta feita, “autorizou-se” a inclusão entre os títulos sujeitos a protesto, das certidões de dívida ativa pela Fazenda Pública e respectivas Autarquias e Fundações Públicas.

Modificação esta, que na visão do STJ representou tendência dita como “moderna”, de junção dos regimes jurídicos de direito público e direito privado ao protesto de títulos. Isso porque, ao autorizar a Administração Pública a se valer do protesto para apontamento da CDA, rompeu-se a vinculação do protesto estritamente com o direito privado.

A complexidade do tema é demonstrada haja vista a matéria envolver questionamentos referentes tanto à parte material quanto à processual do protesto de Certidões de Dívidas Ativas.

Inclusive, em 9 de novembro de 2016, em Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI 5.135) ajuizada pela Confederação Nacional da Indústria, a decisão do Supremo Tribunal Federal foi pela constitucionalidade da norma. Salientando-se ter havido divergência entre os Ministros, já que o resultado final foi de sete votos favoráveis e três contrários.

Não obstante, o debate sobre o assunto não se restringe a este Julgamento pelo Supremo Tribunal Federal, pois há aspectos de suma relevância não abordados pelo mencionado tribunal. Por isso, o presente artigo vem provocar uma boa reflexão sobre a matéria, indo de encontro ao posicionamento majoritário daquele E. Órgão Julgador, vez que pontos fundamentais não foram naquela ocasião abordados e que por certo, se o fossem, poderiam trazer a mudança orientativa necessária.

  1. DA INCONSTITUCIONALIDADE FORMAL

            1.1   UMA ANÁLISE GERAL SOBRE A MEDIDA PROVISÓRIA:

A Medida Provisória nº 577/2012, trata da criação de direitos e obrigações por ato unilateral do Chefe do Poder Executivo, de forma precária e excepcional, o qual se utiliza atipicamente de atribuições do Poder Legislativo.

A definição acima transcrita foi diretamente extraída do artigo 62 da Constituição Federal, que aduz ser possível, em caso de cumprimento dos requisitos constitucionais de relevância e urgência, a adoção de Medida Provisória pelo Presidente da República, possuindo força de lei e se apresentando imediatamente para submissão do Congresso Nacional.

Ainda sobre o artigo supra, JOSÉ MIGUEL GARCIA MEDINA salienta que as Medidas Provisórias não são leis, mas tem “força de lei” enquanto eficazes, podendo ser “convertidas em lei” (ar.62, Caput e §3) se apreciadas dentro do prazo máximo de 120 dias (CF 62, §3), vez que a sua inobservância acarreta a perda de sua eficácia.

Ou seja, para converter a Medida Provisória em Projeto de Lei, deve-se dentro do prazo de sessenta dias, prorrogáveis por mais sessenta (caso ainda esteja em andamento a votação nas Casas do Congresso Nacional), haver o cumprimento do seguinte procedimento legislativo:

(i) O Presidente da República edita Medida Provisória para em seguida apresentar ao Congresso Nacional – deixando-se claro, na exposição de  motivos, os requisitos constitucionais (Caput, art. 62, CF/88);

(ii) Com o recebimento da MP pelo Congresso Nacional, este cria uma comissão mista temporária, formada por Senadores e Deputados, para apreciação da Medida Provisória (. 62, §5º e 9º, CF/88);

(iii) São opostas emendas pelos parlamentares (art.64, §3 – art. 4 da Resolução nº 1/2002 – CN);

(iv) Com o encerramento do prazo regimental para apresentação de emendas, ocorre a apreciação pela Comissão Mista dos pressupostos legais, constitucionais e formais.( art. 62, §5º e 9º, CF/88);

(v) Posteriormente, ocorre a votação em separado pelo Plenário de cada uma das Casas do Congresso Nacional (Art. 62, § 7 e 8, CF) ;

(vi) Aprovado o Projeto de Lei de Conversão por uma das casas, será revisto pela outra, em um só turno de discussão e votação, e encaminhado ao Presidente da República para sanção ou veto, se a Casa revisora o aprovar, ou arquivado, se o rejeitar. (Caput, art. 65, CF)

Essas prévias informações a respeito da Medida Provisória são de suma importância para a realização da análise crítica da edição da MP 577/2012 até a sua conversão em Lei.

            1.2   DA CONVERSÃO DA MEDIDA PROVISÓRIA 577/2012 NA LEI Nº 12.767/2012:

Apesar de se ter utilizado de Medida Provisória – meio mais célere e eficaz de dar legalidade a assuntos relevantes e urgentes pelo Presidente da República, conforme determinação do art. 62, CF – há gritantes ilegalidades no processo legislativo de edição da Medida Provisória nº 577/2012, convertida na Lei 12.767/2012, a contar inclusive pelo tema, o qual dispõe sobre a “extinção das concessões de serviço público de energia elétrica e a prestação temporária do serviço, sobre a intervenção para adequação do serviço público de energia elétrica, e dá outras providências”.

Diz-se isso, porque foi esta mesma lei a responsável por alterar a Lei de Protestos, através da inserção do parágrafo único do art.1º, cujo conteúdo em nada se relaciona ao tema original da Medida Provisória supracitada.

Ou seja, não precisa ser conhecedor de Direito para entender que há algo de errado e eticamente não louvável na ausência de pertinência temática entre o texto original da Medida Provisória e a Emenda Parlamentar que versou sobre a alteração da Lei de Protestos.

Pormenorizado o trâmite legislativo da Medida Provisória nº 577/2012 até sua conversão em Lei, foram verificadas algumas peculiaridades e obscuridades, conforme demonstrar-se-á:

Em 29 de agosto de 2012, foi editada e publicada a Medida Provisória em comento, cujo encaminhamento para o Congresso Nacional ocorreu no dia seguinte, 30 de agosto de 2012, data esta que marcou o início da sua tramitação legislativa, de forma a instaurar o prazo regimental para apresentação de emendas pelos Senadores e Deputados Federais.

Em 06 de setembro de 2012, houve o encerramento da apresentação de propostas de emendas, conforme determinação do art. 4 da Resolução nº1/2002 – CN, totalizando 88 (oitenta e oito) Emendas apresentadas tanto por Deputados quanto por Senadores.

Em 06 de novembro de 2012, pela complexidade do assunto principal,  a Comissão Mista em segunda reunião solicitou a realização de audiência pública com representantes da Área (Ministério de Minas e Energia, da Procuradoria-Geral da Agência Nacional de Energia Elétrica – Aneel, do Fórum Nacional de Secretários Estaduais de Energia, da Federação Nacional dos Urbanitários do Grupo REDE e da Procuradoria-Geral Federal). Veja-se que até o presente momento está se debatendo e discutindo somente questões relativas ao serviço público de energia elétrica, tema este principal da MP, não havendo maiores considerações.

Em 21 de novembro de 2012, houve a apresentação de Parecer pela Comissão Mista, no qual se concluiu pela suposta constitucionalidade, juridicidade e atendimento dos pressupostos de relevância, urgência e adequação orçamentária e financeira.

Referente à relevância e urgência presentes na Exposição de Motivos da MP nº 577/2012, houve somente o preenchimento dos pressupostos referentes ao tema principal, serviços públicos de energia elétrica, in verbs:

“O setor elétrico enfrenta, atualmente, a situação de apresentar concessionária sob intervenção judicial, em eminência de ter sua falência decretada, tornando-se urgente disciplinar o que cabe ao poder concedente fazer imediatamente após a eventual consumação desse fato. Além disso, para evitar que outra situação semelhante volte a ocorrer, torna-se premente afastar os regimes de recuperação judicial e extra-judicial das concessionárias e permissionárias de serviço público de eletricidade, pois entende-se como mais adequado às especificidades dessas concessões e permissões que essa recuperação se dê sob o regime da intervenção que, deste modo, buscou-se robustecer.

Dessa forma, justificada a relevância do ato normativo, destaca-se a sua urgência em virtude de situação de gravidade e dificuldade, tanto econômico-financeira quanto técnica envolvendo concessionárias de prestação de serviço público de energia elétrica, para cuja solução carece o atual ordenamento jurídico de adequado regramento, determinando a adoção das alterações ora propostas¹⁰.”

Não obstante, conforme já dito e agora demonstrado, não houve apresentação de relevância e urgência sobre a necessidade da alteração na Lei dos Protestos, requisito necessário, conforme disposto no Caput do art. 62, da CF.

Sobre esse aspecto NELSON NERY JUNIOR frisa que: ” na Exposição de Motivos, cabe ao Presidente da República demonstrar, de forma cabal,  a presença dos requisitos constitucionais, os quais serão aferíveis pelo Congresso Nacional (CF 62 §5º) para sujeitar a Medida Provisória, bem como a lei que a converter ao controle judicial de sua constitucionalidade abstrata ou concreta¹¹.

E mesmo com a ausência dos requisitos constitucionais, e com a falta de conexão com o texto originário da MP nº 577/2012, o artigo referente à alteração da Lei de Protesto ainda assim permaneceu na redação final, sendo curiosa e obscura a forma como foi  introduzido na legislação.

JOSÉ MIGUEL GARCIA MEDINA discorre acerca da necessária presença da discussão e debates nas comissões, ocasião em que analisa a constitucionalidade traçada pela Lei Maior, no sentido de ” (…) O controle político ser exercido pelo parlamento, mediante suas comissões que depuram os projetos de lei, que são submetidos ao processo legislativo, assim como pelo Poder Executivo, o qual possui poder de veto em caso de inconstitucionalidade parcial ou total (art. 66, §1, da CF)¹².

Tendo em mente a função das Comissões Legislativas, salienta-se que:

A Comissão Mista aprovou tanto a Medida Provisória, como também as Emendas de nºs 1, 11, 33, 40, 42, 43, 47, 58, 62, 76 e 86, rejeitando as demais.  Contudo, foi observada a ausência, dentre as Emendas aprovadas, daquelas que deveriam dispor sobre a introdução dos art. 22 ao 28 da Lei nº 12.767/2012, posto que não estavam contidas na Medida Provisória nº 577/2012 ou na sua conversão em Projeto de Lei.

Isso porque, houve a inserção direta desses novos artigos no próprio Parecer Legislativo apresentado pela Comissão Mista. Ou seja, sem apresentação de Proposta de Emenda Legislativa.

Reforça-se. No presente caso, a alteração da Lei de Protesto está disposta no art. 25 da Lei nº 12.767/2012 (o qual não se sabe o momento ou quem a inseriu no texto, pois não consta na versão originária e nem nas Emendas apresentadas posteriormente), sendo simplesmente inserido dentro do Parecer do Relator, cuja obscuridade já fere de morte o princípio da publicidade e da transparência dos atos administrativos, bem como o princípio da legalidade.

Lembrando que a única menção do Parecer, referente à alteração na Lei de Protestos, é a explanação do assunto ser relevante em virtude da  necessidade de preenchimento da lacuna legislativa e dar como prática recorrente o protesto de CDA por determinados entes da Federação, observáveis pelos argumentos abaixo transcritos:

“Por fim, incluímos no PLV novos artigos, tratando de temas extremamente relevantes.

(…)

De outra parte, o art. 26 dá nova redação ao parágrafo único do art. 1º da Lei nº 9.492, de 10 de setembro de 1997, com o objetivo de tornar inequívoca a prerrogativa das Fazendas Públicas de promoverem o protesto extrajudicial de certidões de dívida ativa. Afastam-se, assim, as divergências jurisprudenciais que hoje existem em torno da matéria, dada a atual omissão legislativa. O protesto de títulos de dívida ativa já é implementado em âmbito federal e por alguns dos entes federados, tendo contribuído para a redução da inadimplência dos devedores do Erário, promovendo, assim, maior eficiência nos mecanismos de cobrança”¹³.

Mostra-se com o supracitado o descabimento de tal medida, principalmente ao adotar como correta a necessidade de positivação de aludido artigo (art.1 da Lei nº 9.492/97) em virtude de uma atuação já existente. Comportamento abusivo (referente à atuação da Fazenda Pública) que não justifica sua positivação sem ao menos ponderar posicionamentos divergentes sobre o tema.

Dando-se continuidade ao trâmite da conversão da MP nº 577/2012 em Lei, em 28 de novembro de 2012, houve a 3ª Reunião da Comissão Mista, na qual se aprovou o Parecer elaborado pelo Relator.

Assim, converteu-se o texto final trazido pelo Relator no Projeto de Lei de Conversão nº 29/2012, com as emendas carentes de publicidade, bem como extrapolando o prazo institucional de 60 (sessenta) dias para a Medida Provisória se converter em Lei, posto que, de fato, iniciou-se a conversão somente 90 dias posteriores a publicação da Medida Provisória nº 577/2012.

E, como bem se sabe, somente se concede prorrogação do prazo no caso excepcional de ainda haver “debate” sobre a votação nas duas Casas do Congresso Nacional,  que não foi o caso – o protocolo legislativo e envio para votação na Camara dos Deputados somente ocorreu em 30 de novembro de 2012.

Ao ser aprovado nas duas Casas Legislativas, em 18 de dezembro de 2012, o projeto de Lei foi encaminhado para sanção presidencial, com veto parcial em 27 de dezembro de 2012.

Tratando sobre os requisitos de validade para conversão de Medida Provisória em Lei, JOSÉ LEVI MELLO DO AMARAL JUNIOR traz à lume:

“A lei de conversão particulariza-se e qualifica-se por: a) pressupor uma medida provisória a converter; b) possuir conteúdo delimitado e condicionado pela medida provisória; c) seguir processo legislativo específico; e d) dever ser aprovada dentro do prazo constitucional sob pena de decadência. Portanto, tendo âmbito temático próprio, bem assim processo legislativo específico, a lei de conversão da medida provisória é, insista-se, espécie normativa primária e autônoma¹⁴”.

Conclui-se como cristalina a realização de manobra política para a inclusão forçada de dispositivo legal com fundamento no exposto anteriormente. Isso ocorre porque, ao contrário do procedimento de conversão da Medida Provisória em Lei, o Projeto de Lei necessita de vários anos de deliberação no parlamento até que seja convertido em norma jurídica.

1.3  DA EXISTÊNCIA ANTERIOR DE PROJETO DE LEI  PARA ALTERAÇÃO DA LEI DE PROTESTOS:

Importante trazer à baila que, em 24 de maio de 2012, houve apresentação do Projeto de Lei nº 1.426/2011, cujo cerne de seu conteúdo se mostra diametralmente contrário à alteração ocorrida na Lei nº 9.492/1997. sendo verificável mencionada contrariedade através da exposição de motivos deste Projeto, em Parecer da Comissão de Finanças e Tributação da Câmara de Deputados, apresentada em 19 de abril de 2012,  que resumidamente assim expõe: “A utilização desse instituto do Direito Civil por órgãos públicos constitui desvio claro de sua finalidade, pois, no âmbito do Direito Público a prova da inadimplência já existe quando é feita a inscrição do débito na dívida ativa, a qual, portanto, cumpre exatamente a mesma função. Desta feita, tem-se como certo e inequívoco ser o protesto de títulos ato essencialmente voltado para as relações privadas. Por conseguinte, em nada justificaria que vá buscar no âmbito privado meio para coagir e constranger seus devedores inadimplentes“. E integralmente ora transcreve-se:

A utilização desse instituto do Direito Civil por órgãos públicos constitui desvio claro de sua finalidade, pois, no âmbito do Direito Público a prova da inadimplência já existe quando é feita a inscrição do débito na dívida ativa, a qual, portanto, cumpre exatamente a mesma função. Assim, quando o credor, ente público, adquire a certeza de que o devedor da obrigação pecuniária, tributária ou não-tributária – como é o caso das multas de trânsito -, tornou-se inadimplente, inscreve o débito na dívida ativa e lança o nome do inadimplente no Cadin – Cadastro Informativo de Créditos não Quitados do Setor Público Federal, imputando-lhe, ato contínuo, as consequentes sanções, de cunho administrativo. Tem-se como certo e inequívoco, portanto, que o protesto de títulos constitui ato essencialmente voltado para as relações privadas (…) nada justificando que vá buscar meios próprios e indispensáveis ao âmbito privado para coagir e constranger seus devedores inadimplentes, mediante o uso de mecanismo que provoca o lançamento de seus nomes em listas de entidades privadas destinadas exclusivamente a proteger de maus pagadores os envolvidos em relações comerciais privadas, como o SPF, a SERASA e outros¹⁵.”

Considerando o disposto acima, a apresentação de Projeto de Lei sobre a desnecessidade de Protesto de CDA pela Fazenda Pública ocorreu em data anterior (em 24/04/2012) à  Medida Provisória convertida em Lei (em 21 de novembro de 2012 – quando foi inserida no texto da PLV, em parecer apresentado pela Comissão Mista), portanto, a prefalada urgência e relevância eram inexistentes.

Assim, não somente pela ausência de manifestação desses pré-requisitos (sobre a possibilidade de protesto de CDA pela Fazenda Nacional na Medida Provisória n° 577/2012), como também pelo fato de se ter apresentado a aludida Medida Provisória quando já estava tramitando o Projeto de Lei nº 1.426/2011.  Inclusive, este último, seria o procedimento legislativo correto a ser utilizado, vez que realmente oportunizaria o debate democrático sobre o tema.

Veja-se, que a celeridade provocada pelo precário procedimento legislativo de conversão de Medida Provisória em Lei deixou muito a desejar e trouxe as consequências provocadas pela sua implementação, de forma a subtrair a efetivação de debate público sobre a questão, como também do embate deliberativo proporcionado pelo rito ordinário, calando propositalmente as vozes contrárias ao tema, e mais, por meio ilegítimo e antidemocrático.

Nesse sentido, ratifica ANDRÉ DEL NEGRI, com base em ELPÍDIO DONIZETE NUNES, contra a adoção desarrazoada de Medidas Provisórias quando diz “a extrema sumariedade de seu trâmite pode ocasionar graves consequências por meio da supressão de garantias processuais, levando a um produto final desprovido de legitimidade¹⁶

Inclusive, a impossibilidade de Emenda Parlamentar em Medida Provisória, quando carente de pertinência temática com o texto original, – também conhecido como ‘contrabando legislativo’ ou ‘Jabuti Legislativo’ – foi objeto da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 5127/DF,  de relatoria da Ministra Rosa Weber, cujo cerne vai de encontro  ao que se tem defendido em algumas obras doutrinárias (que aduzem a constitucionalidade com fundamento nesta decisão do STF), tendo em conta o posicionamento do Supremo ser claramente pela sua inconstitucionalidade.

Esta visão é inequívoca quando se faz leitura de cada um dos votos proferidos no acórdão, sendo reforçada pela fala do falecido Ministro Teori Zavascki, ao pronunciar-se no julgamento em questão do seguinte modo:

A maior dificuldade é justamente a consequência da declaração de inconstitucionalidade da emenda em relação aos demais casos passados. Se estivesse em questão apenas essa lei, não teríamos problema de reconhecer pura e simplesmente a inconstitucionalidade. A dificuldade está justamente na reiteração do vício, decorrente do que o Ministro Barroso chamou de costume. Eu diria que se trata de uma espécie de norma consuetudinária, até contra legem, porque a Lei Complementar nº 95, que trata da técnica de formulação das leis, já contém essa proibição no art. 7º, inciso II, segundo o qual “a lei não conterá matéria estranha a seu objeto ou a este não vinculada por afinidade, pertinência ou conexão¹⁷“.

Como bem salientado pelo Ministro, o assunto principal (o contrabando legislativo) é considerado inconstitucional por toda Corte. Todavia, em virtude dos reflexos da declaração da sua inconstitucionalidade frente à existência de inúmeras Leis elaboradas dessa forma, e do efeito cascata em outros dispositivos, os quais não são mensuráveis, optou-se por bem, fundando-se no princípio da segurança jurídica, em declarar a inconstitucionalidade com efeito ex nunc. Ou seja, todas as leis elaboradas dessa forma até o julgamento continuarão sendo válidas.

Nesse contexto, se tornou formalmente “constitucional” a alteração na Lei de Protestos, legitimando assim a Fazenda Pública a realizar protestos de CDA.

Conclui-se que, apesar de claramente ilegítimo, inconstitucional e anti-democrático o processo de conversão da MP nº 577/2012 na Lei nº 12.767/2012, o Congresso Nacional e a decisão do STF afastaram qualquer possibilidade de efetivação de debate democrático relativo ao  tema.

  1. DA INCONSTITUCIONALIDADE MATERIAL:

Sabe-se que a Execução Fiscal é o procedimento jurídico válido para cobrança de débitos devidos à Fazenda Pública, ainda assim, secundariamente, existem outras técnicas utilizadas em seu auxílio, entre elas está o Arrolamento Fiscal, Ação Cautelar Fiscal, a possibilidade de indisponibilizar ativos financeiros mediante quebra de sigilo bancário e hodiernamente se busca a possibilidade de utilização do protesto.

A Lei nº 9.492 de 1997 (que regulamentou o protesto), faz menção tanto a serviços de protestos de títulos como a “outros documentos de dívida”. Em virtude dessa expressão estar contida tanto na ementa, como no fim do art. 1º da Lei de Protestos, o Fisco viu a possibilidade de justificar a utilização do protesto extrajudicial como forma de cobrança de crédito tributário, o que lhe rendeu severas críticas.  

Nos coerentes comentários de HUGO DE BRITO MACHADO, este alega serem indiferentes os efeitos do protesto quanto se trata de crédito tributário, na medida em que não viabiliza o pedido de falência do devedor ou o induz em mora, bem como não preserva o direito de regresso contra coobrigados¹⁸, posto que a Certidão de Dívida Ativa já possui presunção de liquidez e certeza. Assim, MACHADO conclui ser evidente o abuso praticado em decorrência da absoluta desnecessidade de sua utilização para propositura da Execução Fiscal¹⁹ e a indiscutível finalidade de causar dano ao contribuinte com seus efeitos – sem qualquer proveito para a Fazenda Pública²⁰.

Todavia, a Segunda Turma do Superior Tribunal de Justiça fixou tese diversa embasada no artigo 1º da Lei 9.492/97, ao firmar que o protesto é um instituto “bifronte”, cuja função não é somente constituir o devedor em mora e provar a inadimplência, mas também ser modalidade alternativa para cobrança de dívida. Assim, este Respeitável Tribunal, interpretou pela amplitude do instituto – desvinculando-se dos títulos estritamente cambiariformes para, também, abranger todo e qualquer “títulos e documentos de dívida ativa²¹. Ou seja, acatou-se a tese formulada pela Fazenda Pública.

Na visão de CAVALVANTE,  este método só se tornaria perfeito e civilizado se a Fazenda Pública – em todos os âmbitos em que atua – fizesse presentes de maneira indiscutível o contraditório e a ampla defesa.

Inclusive, o estudioso se mostra temeroso quanto a possibilidade de utilização do protesto. Muito em virtude da simples possibilidade do Fisco, por desconfiança de realização de fraude ou burla de lei, tornar possível a inserção de ofício de sócios-gerentes como responsáveis tributários relativos às empresas devedoras de tributos, as quais passariam a estar expostos – sem oportunidade de se defender – se estas empresas fossem protestadas.²²

Em uma análise realista – levando em consideração as razões de voto do acórdão proferido pelo STJ e os argumentos trazidos na decisão do STF – adverte-se pela impossibilidade de se concluir pela bifrontalidade como se quer colocar, tendo em conta a existência de indicações do instituto  (quando aplicado a CDA) muito mais como unilateral do que o posto, quando visa somente a cobrança pura e simples de possíveis créditos tributários,  ao inverso da real preocupação da existência de uma efetiva garantia à ampla defesa e ao contraditório, de forma a perder de vista qualquer validade e honrarias dadas ao Instituto em sua aplicação normal.

Conforme supracitado, quando se tornou vigente a alteração legislativa  que  incluiu o parágrafo único no artigo primeiro da Lei 9.492/97, reafirmou-se o aludido acórdão proferido pela Segunda Turma do STJ.

Abrindo-se parênteses para realizar uma análise crítica do relatório proferido no REsp 1.126.515 (Acórdão paradigma), ao se afirmar que a “interpretação contextualizada” da Lei nº 9.492/1997 tem se tornado uma tendência “moderna” de interpretação dos regimes jurídicos próprios do Direito Público e Privado, queremos dizer que tal tese não nos convence e não corroboramos com esta afirmativa.

Não nos convence porque há desconexão e falta de aprofundamento no estudo sobre o manuseio do instituto do protesto, o qual foi pensado e modulado para corresponder corretamente a relações tipicamente comerciais (pertencente à vertente do Direito Privado), mas, passará a ser utilizado também nas relações entre contribuinte e Fisco (típicas de Direito Público), regida por princípios e prerrogativas tão distantes e estranhas ao Direito Privado. Honestamente, em nosso ver, não há nada de moderno nessa forma de interpretar regimes jurídicos.

Isso porque, as consequências advindas dessa nova modalidade de cobrança mostram ausência de previsão relativa a alguns contornos, limites e efeitos decorrentes da prática pelo ente público – não só porque não foram regulamentadas e debatidas em âmbito legislativo ou mesmo ignoradas pela esfera maior do Judiciário – mas porque trazem controvérsias e inaplicabilidades decorrentes dessa imbricação entre o instituto de Direito Publico e do Direito Privado, vejamos:

(i) Ausência de prescrição: não tendo a Certidão de Dívida Ativa natureza cambial, não há interrupção da prescrição relativa a créditos tributários, por três razões: a),  o inciso III, Art. 202 do Código Civil é relativo a interrupção por protesto CAMBIAL; b) conforme disposto no art. 146,inciso III, ‘b’ da CF²³, em matéria tributária a prescrição somente dar-se-á através de Lei Complementar; e por fim, c) o Código Tributário Nacional (art. 174, parágrafo único) inseriu somente o  protesto judicial como causa de interrupção da prescrição, deixando de fora o protesto extrajudicial.

(ii) A possível multiplicação de ações cautelares de sustação de protestos: está equivocado quem defende o uso do protesto para colaboração da diminuição de ações de execuções fiscais referentes à cobrança de crédito tributário, pois acarretará o efeito inverso.

A título exemplificativo, comenta-se o acórdão proferido  no Agravo de Instrumento nº 2183393-35.2016.8.26.0000, julgado pela 3ª Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça de São Paulo, de relatoria de Kleber Leyser de Aquino, proferido em 18.04.2017, que  mesmo com a decisão do STF pela possibilidade de realização de protesto de CDA,  o Colendo Tribunal decidiu que: “se a CDA estiver com exigência descabida – no caso em tela, referente a taxa de juros aplicável aos tributos e multas que excediam àquela incidente na cobrança dos tributos federais, –  tornar-se-ia  possível a sustação do protesto²⁴.

No acórdão restou claro que embora a certidão de dívida ativa gozasse de presunção de liquidez e certeza (prerrogativa típica de Direito Público), razão pela qual poderia ser exigido seu protesto, a ausência de valor de execução de cobrança de juros abusivos, ainda que parcialmente, fez com que a CDA, no caso concreto,  deixasse de ser “certa” e “exigível”, tornando-se invalidada como título executivo²⁵.

Isto é corroborado por outros autores, como AMAL NASRALLAH que esclarece ser o precedente de suma importância, pois em suas palavras ” o Estado de São Paulo, na grande parte das CDAs, exige juros acima da Selic e, portanto, o precedente pode ser aplicado em INUMERÁVEIS casos²⁶.

Não obstante, deve-se também observar outras situações. Conforme exemplo dado por MANTOVANNI COLARES CAVALCANTE, quer-se dar modernidade para possibilitar à Fazenda Pública se utiliza de meio privado, como é o protesto, para tentar reaver possíveis créditos tributários. Mas não se concede ou discute a equiparação de seus atos (do Fisco) aos atos jurídicos em geral, posto que ainda prevalece a arcaica e rígida presunção de legalidade dos atos da Administração Pública. O Douto ainda aprofunda ser este o caso da Certidão de Dívida Ativa, pois ainda se tem a “pureza” da não interferência do Direito Privado quanto à sua presunção de veracidade e, ao final questiona, onde está a dita modernidade? Nós também não sabemos.E, pela primazia de suas palavras, colacionou-se ipsis litteris:

Fico a imaginar quão interessante seria essa intersecção do Direito Púbico com o Direito Privado para acabar de vez com a rígida presunção da legalidade dos atos da Administração Pública, equiparando-os aos atos jurídicos em geral.

Aliás, em relação à certidão de dívida ativa, ainda se tem a “pureza” da não interferência do Direito Privado quanto à sua presunção de veracidade, pois a responsabilidade por substituição dos sócios-gerentes deveria impor um elemento subjetivo para sua caracterização. Entretanto, basta a Fazenda apontar alguém como responsável sem a prévia comprovação de atos de desvio de conduta para legitimar sua inclusão no título executivo, pois o entendimento atual é o de que compete ao sócio-gerente comprovar que não agiu com infração à lei, contrato social ou estatuto, exatamente porque a certidão de dívida ativa goza de presunção de liquidez e certeza.

Onde está, nesse caso, a tão propagada “modernidade”? E a intersecção entre o Direito Público e o Direito Privado, não vale nessa situação? Ora, com essa mentalidade nada contemporânea, é suficiente ao Fisco incluir o nome dos sócios-gerentes nas certidões de dívida ativa, independentemente de prévia apuração da responsabilidade no campo administrativo. A tão “antiga” presunção da legalidade dos atos da administração poderá servir de salvo-conduto para a total liberdade de fazer constar o nome do sócio-gerente no título executivo, porque é mais cômodo para a Administração Tributária acionar a sociedade e o sócio-gerente na execução fiscal – e agora cobrar previamente pela via do protesto extrajudicial –, deixando a discussão a respeito da existência ou não da responsabilidade do sócio-gerente para os embargos à execução.”

(iii) A dúvida relativa à providência de baixa do protesto pelo contribuinte.

Veja-se a decisão do AgRg no Agravo em REsp 493.196,  que discorre sobre a desobrigação do credor em providenciar a baixa do protesto, quando ocorrido em exercício regular de direito:

AGRAVO REGIMENTAL. AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. AÇÃO INDENIZATÓRIA. PROTESTO REGULAR. OBRIGAÇÃO DE BAIXA. DEVEDOR. 1.- A jurisprudência desta Corte se firmou no sentido de que, se o protesto ocorreu no exercício regular de direito, o credor não está obrigado a providenciar a baixa do protesto. 2.- Agravo Regimental improvido²⁷.

Então, questiona-se: quem será  o contribuinte ou o responsável tributário,  a ficar encarregado de dar baixa do protesto?

Esses são somente alguns questionamentos, deixando-se clara a existência de que há  muito mais por vir, na medida em que não restam claros nem os princípios que podem ou não vigorar no caso de protesto de CDA, uma vez que o Direito Publico e Privado, pela sua natureza, apresentam peculiaridades que muitas vezes não se harmonizam.

Concluí-se, deste estudo, o absurdo generalizado provocado pela alteração na Lei do Protesto sem o devido aprofundamento do tema em âmbito legislativo, o qual com certeza refletirá nos casos concretos.

Com efeito, nas palavras de  DARCY ARRUDA MIRANDA JR, a clara definição do protesto cuja finalidade, entre outras,  era de RESGUARDAR DIREITOS, de modo a afastar a utilização do instituto como meio punitivo ou meio de penalização do devedor. Pois,  NÃO É MEIO DE COBRANÇA OU COAÇÃO, como se tem utilizado na prática por alguns credores, para que o devedor cambiário sofra os reflexos do descrédito²⁸.

A realidade atual se mostra mais próxima do que a definição acima tentou claramente afastar. Isso porque, o protesto deixou de ser utilizado como “ato formal e solene pelo qual se prova a inadimplência e o descumprimento de obrigação originada em títulos e outros documentos de dívida”, conforme determinado no art. 1º da Lei 9.492/97, para se tornar, no campo tributário, puramente um meio coercitivo de cobrança de créditos em certidões de dívidas ativas por determinação da Lei nº 12.767/2012.

Outrossim, ressalta-se a questão quanto à configuração de sanção política no julgamento do STF da ADI n 5.135, pois apesar de se ter declarado a não configuração de sanção política, essa visão não foi unânime.

Para o Ministro EDSON FACHIN, a possibilidade de protesto da dívida ativa caracteriza sim uma sanção política, inclusive vedada pela jurisprudência da própria Corte.  O ministro ainda fez menção a redação das Súmulas 70,323 e 547 do Supremo que, em sua visão, indicam o posicionamento assentado da Corte pela impossibilidade de se utilizar da sanção política para cobrança de débitos tributários²⁹.

Para o Ministro MARCO AURÉLIO, houve vício formal e material na decisão. Relativo ao primeiro (vício formal), reforçou a necessidade de existência de uma correlação mínima entre o conteúdo da MP e o conteúdo de conversão, podendo ocorrer emendas, desde que se resguarde certo parâmetro, o qual inexistiu no presente caso. Em suas palavras “o que surgiu foi um jabuti. Pegou-se carona – não sei onde esteve essa inspiração dos representantes do povo brasileiro – que despiram-se, a meu ver, dessa representação.” Já quanto ao segundo (vício material), o conteúdo da norma é inconstitucional, vez que a única finalidade é a “coação do devedor”. ipsis litteris: “Os exemplos citados na tribuna quanto a liquidação de débitos que foram levados a protesto, provam para mim em demasia o objetivo visado. Não foi outro senão compelir, compelir coercitivamente, sob ângulo político, o devedor a satisfazer o débito existente³⁰.

Por fim, concordando com os argumentos trazidos pelos Ministros supracitados, o Ministro RICARDO LEWANDOWSKI, concluiu também pela configuração de sanção política no uso do protesto nas cobranças tributárias, que vulnera o devido processo legal:

É um ato unilateral da administração, sem qualquer participação do contribuinte, numa medida que constrange aquele que sustenta o Poder Público com o pagamento de Tributos³¹“.

Longe de objetivar o esgotamento do tema, há a presença de desafios a serem enfrentados pelos estudiosos do Direito ao se defrontarem com mais essa dura realidade  imposta aos contribuintes.

  1. CONCLUSÃO

Diante de todo o exposto, pode-se concluir que existem graves problemas relativos à  tratativa das Medidas Provisórias no âmbito legislativo, posto que, apesar do STF ter lançado paradigma para proteção contra futuras realizações  de “contrabandos legislativos”, houve a cristalização de institutos claramente inconstitucionais, como o caso da alteração na Lei de Protestos em virtude da promulgação da Lei nº 12.767/2012,  constituindo afronta direta ao Estado Democrático de Direito, conforme expresso no artigo 1º da CF.

Isso porque, como bem se viu, na tramitação da MP 577/2012 na Lei nº 12.767/2012 houve clara desconsideração tanto do prazo para apresentação das emendas, como inobservância do lapso temporal de 60 dias para findar a sua tramitação. Ainda, não se deu publicidade para saber quem e quando foi inserido a  emenda relativa ao artigo que alterou a Lei de Protesto e muito menos uma exposição de motivos de relevância e urgência.

Em realidade, não poderia nem ser inserido nessa MP 577/2012 a emenda relativa ao Protesto de CDA, posto que resta ausente  qualquer pertinência temática com o texto original. No bem dizer do saudoso Ministro Teori Zavascki, trata-se de espécie de norma consuetudinária contra legem,  em virtude de proibição expressa  disposta no art. 7º , inciso II, da Lei Complementar nº 95, a qual trata de técnica de formulação das leis em que aduz: a lei não conterá matéria estranha a seu objeto ou a este não vinculada por afinidade, pertinência ou conexão“. Ainda mais quando já se tinha apresentação de Projeto de Lei nº 1.426/2011, sobre o tema que sorrateiramente se inseriu na Medida Provisória.

Relativo aos aspectos materiais, o protesto se mostra com a finalidade de (i) viabilizar o pedido de falência do devedor; (ii) induzi-lo em mora; (iii) preservar o direito de regresso contra coobrigados. Ou seja, nenhum desses efeitos podem atingir o crédito tributário se mostrando portanto, desnecessário. Ademais, o cerne do instituto é a preservação de Direitos e não meio de cobrança ou coação, como se tem utilizado atualmente.

Outrossim, houve a aparição de vários questionamentos sobre a utilização do instituto do protesto, em virtude da dita “moderna” inserção de protesto no Direito Público em instituto tipicamente de direito privado (como o é o Protesto).  Mostrou-se que pode ocorrer: (i) o aumento e não diminuição de ações  em virtude das cautelares de sustação de protesto; (ii) a impossibilidade de interrupção da prescrição;  (iii) dúvida se será o contribuinte ou o responsável tributário incumbido de retirar o débito inscrito em protesto e no decorrer do tempo haverão muitos outros questionamentos, ainda mais porque precisarão observar os procedimentos cartorários.

Viu-se também a existência de uma visão parcial do instituto,  porquanto se objetiva diretamente a recuperação de possíveis créditos tributários pela Fazenda Pública – sem levar em consideração um maior estudo sobre a proteção do contraditório e da ampla defesa – bem como a ausência de pronunciamento acerca da possibilidade de perda de presunção de liquidez e certeza pela Fazenda Pública, quando o protesto de certidão de dívida ativa pertencer ao instituto típico de Direito Privado ora usurpado pela esfera pública.

Conclui-se que a eventualidade da existência de benefícios trazidos pela possibilidade da Fazenda Pública realizar Protesto de créditos tributários não justifica os meios escolhidos para dar validade a essa mudança legislativa. Ainda menos louvável se ter imposto essa alteração de forma unilateral, visto que, conforme foi demonstrado, não se deu sequer possibilidade de debate sobre o tema relativo à conversão da MP nº 577/2012 na Lei nº 12.767/2012, a quem se mostra contrário a essa modificação na Lei.  O Protesto é cristalinamente inconstitucional, mas terá o contribuinte que tolerar mais essa “modernidade” a ele imposta.

Inclusive, arriscamos dizer que essa modernidade não passa de mais um dos reflexos da modernidade líquida definida na obra de BAUMAN, cujo termo tem estrita relação cambiante entre o tempo e o espaço³².

Resta claro estar essa nova modernidade (dita como líquida) diretamente relacionada ao cultivo da transitoriedade de todas as coisas, do afastamento da rotina, da previsibilidade e durabilidade que antes solidificavam a sociedade e seus institutos. Essa solidez antes era representada pelas relações pessoais, crenças, tradições, direitos costumeiros ou não, tudo o que perdurava sobre o tempo.

Mas a “modernidade” como está posta mostra-se fluida, em decorrência de não se ater muito à qualquer forma e estar constantemente pronta e propensa a mudanças, de forma a se preocupar exclusivamente com o tempo, mais do que o espaço que lhes toca ocupar³³.

Essa é a interpretação que temos dessa “modernidade” intitulada para a validação desse instituto, o qual supervalorizou o tempo a ser supostamente economizado com diminuição de Execuções Fiscais, mas  ignorou o espaço necessário para o amadurecimento do tema para que ela pudesse solidificar verdadeiramente sobre o tempo e trazer uma mínima segurança jurídica tão necessária ao Direito.

Por fim, já que se está falando em “modernidade”, traz-se à baila a última modalidade  da Fazenda Pública, que por certo será objeto de novo estudo, a chamada ‘averbação pré-executória”, cuja previsão consta no art. 25 da Lei nº 13.606/2018. Esse dispositivo  permite que, após a inscrição em dívida ativa da União, seja suficiente a notificação pela PGFN ao devedor para que este, em  5 (cinco) dias,  dê quitação ao débito. Caso contrário, com o acréscimo dos art. 20-B, 20-C, 20-D e 20-E à Lei nº 10.522/02 (em virtude do art. 25 da Lei nº 13.606), será permitido a União o bloqueio de bens de devedores sem a necessidade de autorização judicial. Aludido dispositivo repercute em supressão funcional de atividade privativa de órgão e auxiliares do Poder Judiciário, previsto no art.5º, inc. XXXV, CF/88.  Ou seja, mais uma forma de sanção política inconstitucional a vista.

Finalizamos o aludido artigo com a seguinte reflexão: “Se tudo se transforma em ponderação, a margem de subjetividade se mostra tão grande que a segurança jurídica e a objetividade do sistema desaparecem por completo³⁴“. É o que esta ocorrendo em âmbito jurídico – tributário ao se “modernizar”.


BIBLIOGRAFIA:        

AMARAL JUNIOR, José Levi Mello do. Medida provisória e sua conversão em lei: a emenda constitucional nº 32 e o papel do Congresso Nacional. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004.

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_______. Constituição da República Federativa do Brasil, de 05 de out. de 1988, Brasília, out. 1988.

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___. AREsp 493196(2014/0067377-2 – 29/04/2014). Relatoria: MINISTRO SIDNEI BENETI. Terceira Turma. DJ. 09/06/2014. STJ, 2014.

STF. ADI nº 5135. Rel. Ministro Roberto Barroso. Tribunal Pleno. Julgado em 09/11/2016. Disponível em <http://www.stf.jus.br/portal/processo/verProcessoAndamento.asp?incidente=4588636> Acesso em: 15/11/2017.

___. AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE: ADI 5127/DF. Relatora: Ministra Rosa Weber. DJ: 21/10/2015. STF, 2015. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/processo/verProcessoAndamento.asp?incidente=4580410> Acesso em: 20.11.2017

TJSP. Agravo de Instrumento nº 2183393-35.2016.8.26.0000 SP 2183393-35.2016.8.26.0000; Rel. Kleber Leyser de Aquino. 3ª Câmara de Direito Público. Dj 19.04.2017.

 


 

[1] Advogada e Pós-Graduanda em Direito Tributário no Instituto Brasileiro de Estudos Tributários- IBET- PR. Sócia na Sociedade de Advogados Batista Pereira & Oliveiro Advogados Associados.

[2] Advogado Especialista em Direito Tributário, Processual Tributário e  Direito Empresarial  pela Pontifícia Universidade do Paraná-PUC/PR. Ex-Presidente do Instituto de Direito Recuperacional – IDRE na gestão 2013-2015. Ex-Conselheiro da Ordem  dos Advogados do Paraná – Subseção Curitiba. Ex-Professor de Direito Comercial e Falimentar da Pontifícia Universidade do Paraná – PUC/PR. Sócio na Sociedade de Advogados Batista Pereira & Oliveira Advogados Associados.

[3] BRASIL.Lei no 6.830, de 22 de setembro de 1980. cobrança judicial da Dívida Ativa da Fazenda Pública, e dá outras providências.Brasília, DF, set. 1980.

[4]  STJ. Resp. nº 1.126.515 /PR. Rel. Ministro Herman Benjamin. Segunda Turma. Dje 16/12/2013.

[5]  STF. ADI nº 5135. Rel. Ministro Roberto Barroso. Tribunal Pleno. Julgado em 09/11/2016. Disponível em <http://www.stf.jus.br/portal/processo/verProcessoAndamento.asp?incidente=4588636> Acesso em: 15/11/2017.

[6] NERY JUNIOR, Nelson; ABBOUD, Georges. Direito constitucional brasileiro: curso completo. – São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2017. p. 489

[7] BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, de 05 de out. de 1988, Brasília, out. 1988.

[8] Art. 62. Em caso de relevância e urgência, o Presidente da República poderá adotar medidas provisórias, com força de lei, devendo submetê-las de imediato ao Congresso Nacional. § 3º As medidas provisórias, ressalvado o disposto nos §§ 11 e 12 perderão eficácia, desde a edição, se não forem convertidas em lei no prazo de sessenta dias, prorrogável, nos termos do § 7º, uma vez por igual período, devendo o Congresso Nacional disciplinar, por decreto legislativo, as relações jurídicas delas decorrentes.

[9] MEDINA, José Miguel Garcia. Constituição Federal comentada. 3ª Ed. rev., atual. E ampl. – São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2014.p 349.

[10] Consulta a exposição de motivos. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2012/Mpv/577.htm> Acesso em 15.11.2017.

[11] NERY JUNIOR, Nelson; ABBOUD, Georges. Direito constitucional brasileiro: curso completo. – São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2017. p. 491

[12] MEDINA, José Miguel Garcia. Constituição Federal comentada. 3ª Ed. rev., atual. E ampl. – São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2014.p 349.

[13]  Relatório do Sendor Romero Jucá que aprova a MPV 577/2012 com determinadas alterações.Disponívelem:<http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_pareceres_substitu ivos_votos?idProposicao=554141> Acesso em 15.11.2017.

[14] AMARAL JUNIOR, José Levi Mello do. Medida provisória e sua conversão em lei: a emenda constitucional nº 32 e o papel do Congresso Nacional. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 284, destaquei.

[15]  CFT parecer ao Projeto de Lei n.º 1.426 de 2011 do relator Reginaldo Lopes. Disponível em: <www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=984114&filename=PRL+ +CFT+%3D>+PL+1426/2011> acesso em 15.11.2017.

[16] NEGRI, André Del. Controle de Constitucionalidade no Processo Legislativo: teoria da legitimidade democrática. Belo Horizonte: Fórum, 2003, p. 86.

[17]  STF. AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE: ADI 5127/DF. Relatora: Ministra Rosa Weber. DJ: 21/10/2015. STF, 2015. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/processo/verProcessoAndamento.asp?incidente=4580410> Acesso em: 20.11.2017

[18] MACHADO, Hugo De Brito.“Protesto de certidão de dívida ativa”. Revista Dialética de Direito Tributário nº 130, de 2006, p. 40.

[19] Ibid., p. 34.

[20] Ibid., p. 40.

[21] Trecho do corpo da ementa (parte do item 4.) do acórdão da segunda turma do Superior Tribunal de Justiça, resultante do julgamento do Recurso Especial 1.126.515, de 3 de dezembro de 2013.

[22] CAVALCANTE. Mantovanni Colares. Alguns efeitos  do protesto  de certidão  de dívida ativa  em relação ao crédito tributário. pag. 5.

[23] Constituição Federal no art. 146: Cabe à lei complementar: (…) III – estabelecer normas gerais em matéria de legislação tributária, especialmente sobre: (…) b) obrigação, lançamento, crédito, prescrição e decadência tributários.

[24]  TJSP. Agravo de Instrumento nº 2183393-35.2016.8.26.0000 SP 2183393-35.2016.8.26.0000; Rel. Kleber Leyser de Aquino. 3ª Câmara de Direito Público. Dj 19.04.2017.

[25] NASRALLAH, TJSP suspende protesto de CDA após  decisão do STF entendendo pela constitucionalidade da medida, publicado em 20 de abril de 2017 < http://tributarionosbastidores.com.br/2017/04/prot-2/> visualizado em 08.01.2018, às 16h43.

[26]  NASRALLAH, TJSP suspende protesto de CDA após  decisão do STF entendendo pela constitucionalidade da medida, publicado em 20 de abril de 2017 < http://tributarionosbastidores.com.br/2017/04/prot-2/> visualizado em 08.01.2018, às 16h43.

[27] STJ. AREsp 493196(2014/0067377-2 – 29/04/2014). Relatoria: MINISTRO SIDNEI BENETI. Terceira Turma. DJ. 09/06/2014. STJ, 2014.

[28] MIRANDA JR., Darcy Arruda. Princípios Gerais do direito Cautelar Brasileiro. São Paulo: Cultural Paulista, 2005. p. 89 e 382

[29]  Em virtude da não publicação do Acórdão até o presente momento as informações sobre a justificativa de votos dos Ministros foram retirados do artigo publicado eletronicamente. MIGALHAS. STF julga constitucional protesto de certidão de dívida ativa. publicado em 23 de novembro de 2017. < http://www.migalhas.com.br/Quentes/17,MI248731,61044STF+julga+constitucional+protesto+de+certidao+de+divida+ativa> visualizado em 11.11.2017.

[30] Ibid. visualizado em 11.11.2017

[31] Ibid. visualizado em 11.11.2017

[32] BAUMAN, Zygmunt. Modernidade Líquida; tradução Plínio Dentzien. – Rio de Janeiro: Zahar, 2001. p.16.

[33] BAUMAN, Zygmunt. Modernidade Líquida; tradução Plínio Dentzien. – Rio de Janeiro: Zahar, 2001. p.8

[34]  FERNANDES, Ricardo Vieira de Carvalho. BICALHO. Guilherme Pereira Dolabella. Do positivismo ao pós-positivismo jurídico: o atual paradigma jusfilosófico constitucional.Brasília a.48 n. 189 jan./mar. 2011. pag. 127

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